E se a aranha…

E se houvesse vida na lua? E se as pessoas pudessem respirar embaixo d’água, como fazem os peixes? E se os cachorros falassem? E se pudéssemos flutuar no ar? E se fosse possível atravessar a Terra de um lado a outro, por um buraco que nos levasse até o Japão? E se todo mundo falasse a mesma língua? E se pudéssemos estender o braço vários metros para pegar algo sem ter que ir até lá? E se pudéssemos caminhar sobre a água? E se a Terra fosse quadrada? E se o Sol apagasse? E se as árvores andassem? E se pudéssemos trabalhar enquanto dormimos e dormir enquanto trabalhamos? E se…

A menina Aracne vivia cheia de perguntas. Mas a que mais a perseguia e que mais lhe causava curiosidade e calafrios ao mesmo tempo era: e se os insetos fossem maiores e mais fortes do que nós? Bom, ela se perguntava, mas nem queria imaginar. Seríamos pisoteados como cruelmente fazemos com as formigas? Seríamos esmagados como uma mosca na parede? Viraríamos merenda de alguma barata? Credo! Ela sacudia a cabeça até outras perguntas a distraírem dessas visões catastróficas. E se pudéssemos ver mais cores do que as que conseguimos ver? E sentir mais cheiros do que o nosso olfato permite? E se bastasse pensar num prato gostoso para que ele aparecesse na nossa frente? E se… os insetos fossem maiores e mais fortes do que nós?!

Não tinha jeito, a pergunta voltava e punha medo. Mas o pavor logo passava. Era só lembrar que os insetos não são maiores e mais fortes do que nós. Aracne dava um suspiro aliviada e ia cuidar da vida.

Era uma linda manhã ensolarada e o pai de Aracne decidiu levá-la para um passeio no Parque Ibirapuera. Após atravessar gramados e bosques de eucalipto, a primeira parada foi no Pavilhão Japonês. “Nossa”, pensou Aracne, “aqui é tudo tão diferente…”. Primeiro, ficou bestificada com o jardim ao redor da casa, todo coberto de pedregulhos brancos, onde pequenas árvores minuciosamente podadas pareciam passear. Em seguida, foi a surpresa das carpas coloridas no laguinho artificial que rodeia uma parte do prédio. Quando entraram no pavilhão, Aracne ficou vidrada nas portas deslizantes, enquanto o pai examinava cuidadosamente os encaixes perfeitos da construção, que não usam pregos, nem parafusos. E as perguntas voltaram. E se todas as casas no mundo fossem como esta? E se todas as portas deslizassem? E se todas as pedras fossem brancas? E se as carpas coloridas falassem, falariam japonês?

Aracne estava de novo perdida em um emaranhado de perguntas quando o pai propôs:

─ Vamos continuar o passeio?

─ Nossa, tem mais coisas para ver?

─ Ah, querida, nem começamos… Tem muito mais.

Os dois saíram do Pavilhão Japonês e, caminhando entre bosques e canteiros, foram parar debaixo da Marquise. Que os levou até o Jardim de Esculturas, em frente ao MAM – Museu de Arte Moderna. Aracne correu ao redor delas, enquanto, na verdade, olhava sem parar para a Oca, o prédio ao lado. Não parece um disco voador? E se fosse um? E se, de repente, levantasse voo? Só esqueceu a Oca quando se deparou com a escultura em granito de uma mulher nua sentada sobre o dorso de um animal. Uau! Tomou um susto.

─ Que mulher bonita! E que animal é esse, pai?

─ Acho que é um cervo…

─ E gente cavalga cervo?

─ Não que eu saiba.

Aracne leu no pedestal: “A ca-ça-do-ra”.

─ Ela é uma caçadora. E por que está pelada?

O pai teve que desenterrar o pouco de mitologia grega que tinha aprendido na escola.

─ Acho que, na verdade, ela é uma deusa.

─ Uma deusa?

─ Uma deusa grega. Artêmis! Isso! É Artêmis! – exclamou o pai todo contente de ter lembrado o nome dela. ─ Reinava nos bosques, acompanhada por cervos e outras mulheres. Por que está pelada? Bom, por que não tinha nada a esconder, não se envergonhava do que era. E, de qualquer forma, quem é que iria vê-la nas profundezas da floresta?

O pai não lembrava mais os detalhes da lenda, mas, quando Aracne perguntou o que aconteceria se alguém a visse nua, de repente, a história toda lhe voltou à memória.

─ E aconteceu com um pobre coitado, um caçador…

─ Jura?

─ Foi sim. Um tal de Ateão. Sem querer, enquanto, a cavalo e acompanhado dos seus cachorros, procurava caça na floresta, deu de cara com a deusa peladinha da silva, enquanto ela se banhava numa cachoeira…

─ Mesmo? E o que aconteceu? – perguntou Aracne, ansiosa para saber.

─ A deusa jogou água na cara do caçador e ele foi transformado em cervo. Os cães que o acompanhavam não o reconheceram mais, atacaram-no e lhe deram tantas mordidas que o coitado morreu.

─ Nossa, essa mulher tão linda fez isso? Mas não foi sem querer que ele a viu pelada? – exclamou Aracne e se perguntou: e se, voltando para casa, o Bolota – o grande gato persa de casa – não me reconhecer, será que vai me arranhar toda? E se o Sansão, o cachorro da Carlota, não me reconhecer, vai me morder até me matar?

Vendo a curiosidade da filha, o pai teve uma ideia:

─ Vamos entrar no MAM?

─ O que é o MAM, pai?

─ É o Museu de Arte Moderna, esse prédio aí.

─ E o que tem lá dentro?

─ Não sei bem, sempre quis entrar e nunca entrei, mas tem pinturas, esculturas, um pouco de tudo…

Aracne correu para a porta e os dois entraram. Depois de algum tempo que circulavam entre as obras, ouviu-se um grito. Vinha da sala ao lado. Era a voz de Aracne. Só então o pai percebeu que ela não estava com ele. Correu para ver o que tinha acontecido e encontrou a filha debaixo de uma aranha gigantesca!

─ Não é possível – repetia Aracne –, não é possível! Então, existem insetos maiores do que as pessoas!

É difícil dizer se a menina estava assustada, surpresa, encantada, indignada, horrorizada ou entusiasmada – ou tudo isso junto. Com certeza, com os braços levantados e os olhos esbugalhados, estava hipnotizada pela aranha. E repetia sem parar:

─ Não é possível, não é possível! Então, existem insetos maiores e mais fortes do que nós!

─ Essa aranha não é de verdade – disse o pai ao se aproximar da menina, embaixo do animal gigante. ─ Além disso, aranha não é inseto, é animal.

─ Inseto, animal… que diferença faz? Ela é enorme e poderia nos esmagar com um pisão!

─ Ela é de metal, meu amor, não pode fazer mal a ninguém. É uma escultura, como as que estão lá fora. Não vê que ela nem se mexe?

─ Mas por que fazer uma escultura de aranha?

O pai não fazia a menor ideia. Por que fazer uma escultura de aranha?

─ E se, de repente, ela ficasse viva e começasse a andar?

Ele já sabia o que ia acontecer: seria esmagado por uma avalanche de perguntas às quais não saberia responder se não fizesse algo imediatamente. Foi pedir ajuda. Voltou com um folheto na mão que falava sobre a obra e, bem ali debaixo da aranha, leu o seguinte para a filha:

Aranha. Escultura em bronze. Autora: Louise Bourgeois. Data: 1996. ‘Aranha é uma homenagem à minha mãe. Ela era a minha melhor amiga. Assim como as aranhas, ela era uma tecelã. Minha família trabalhava com restauração de tapeçarias e minha mãe era a encarregada do ateliê. Assim como as aranhas, minha mãe era muito esperta. Aranhas são presenças amigáveis que comem mosquitos. Sabemos que mosquitos espalham doenças e, portanto, são indesejáveis. Assim sendo, as aranhas são úteis e protegem, exatamente como minha mãe.’ Assinado: Louise Bourgeois”.

Aracne ficou muda – algo que acontecia raramente. Sentou-se novamente no chão, ainda embaixo da aranha gigante. O pai não disse mais nada, mas pensou: “Bom, essa Louise Bourgeois só diz isso porque é francesa, só conhece as aranhicas lá da França e não sabe nada sobre as aranhas venenosas que temos por aqui…”.

Passou-se meia hora e Aracne ainda estava sentada embaixo da aranha, na mesma posição. O pai nunca a tinha visto tão silenciosa e calma. Porém,

estava ficando tarde. Eles tinham convidados para o jantar e a mãe os estava esperando para ajudar nos preparativos.

─ Filha, está na hora de irmos. Ainda temos chão pela frente.

Quando atravessaram a ponte metálica, um dos lugares mais badalados do Parque Ibirapuera, onde as pessoas se amontoam para ver o pôr do sol, Aracne nem prestou atenção nos numerosos cisnes negros deslizando na superfície da água, perto da margem do lago, e nem notou a presença de um grande cardume de carpas e tilápias esperando que alguém lhes lançasse um toco de pão. Estava no mundo da lua. Ou melhor, no mundo das teias…

* * *

Os convidados tinham chegado e estavam todos sentados ao redor da mesa, conversando animadamente. Somente Aracne estava calada – uma raridade. Ainda que perplexos, seus pais estavam contentes com o silêncio e a ausência da costumeira rajada de perguntas. Dessa forma, podiam dar mais atenção às visitas. Enquanto os outros falavam, Aracne marcava linhas entrelaçadas na toalha com a ponta de um talher. E sorria. Lá pelas tantas, na altura da sobremesa – uma cocada queimada de colher servida com uma bola de sorvete caseiro de limão –, alguém resolveu lhe perguntar:

─ O que você quer ser quando crescer?

Aracne parou de desenhar as suas linhas entrelaçadas, sorriu por alguns segundos e exclamou:

─ Quero ser… uma aranha!

Aí, quem ficou mudo foram os seus pais e os convidados. Que doidice, essa menina é mesmo estranha, pareciam pensar. Até que alguém, sem saber o que dizer, resolveu rir, achando que fosse uma brincadeira. E alguém também disse:

─ Mas ela ainda é tão pequena! Como pode saber o que quer ser quando crescer?

Quando os convidados foram embora, a mãe de Aracne, ao tirar a mesa, notou que as linhas desenhadas na toalha se pareciam com uma teia de aranha. “Que gracinha”, pensou, “criança tem cada uma!”.

* * *

Pois bem, a pequena Aracne cresceu. É uma jovem cheia de energia e iniciativa. Aprendeu a arte da tecelagem e começou a fazer tapeçarias num pequeno tear manual na garagem da sua casa. Agora, tem vários teares, bem maiores. Com uma equipe de colaboradores, tece lindos panos e tapetes. Quem disse que não sabia o que queria ser quando cescesse? Sabia – e como! Será que descobriu no dia em que foi com o pai ao Parque do Ibirapuera e visitou o MAM? Só ela pode responder. Mas uma coisa é certa: a sua profissão já estava anunciada no seu nome, sem que ela soubesse, pois Aracne, em grego, significa “aranha”!

© Roberto Carvalho de Magalhães

Complementos:

Você conhece a história da Aracne da mitologia grega?

Era uma jovem tecelã que tinha ousado desafiar a deusa Atena, dizendo que ela tecia melhor do que a própria deusa. Como punição, foi tranformada em uma aranha.

Você sabe quem foi Louise Bourgeois?

Foi uma artista francesa, nascida em 1911, que, mais tarde , se estabeleceu nos Estados Unidos, onde morreu em 2010, aos 98 anos. A primeira aranha gigante que ela criou foi chamada de “Mamam” (“mamãe” em francês) e fica na galeria Tate Modern, em Londres (Inglaterra).

Você conhece o MAM?

Ele é dedicado, principalmente, à arte moderna e contemporânea brasileira. Foi criado 70 atrás, em 1948, e funcionava em um prédio no centro de São Paulo, na rua 7 de Abril. Em 1958, foi transferido para o Parque Ibirapuera e, dez anos mais tarde, passou a ocupar o seu atual espaço na Marquise.

Você conhece o Pavilhão Japonês?

Ele ocupa uma área às margens do lago do Parque Ibirapuera. Foi inteiramente criado no Japão, com técnica e materiais japoneses tradicionais, desmontado e remontado no parque, no ano da sua inauguração, em 1954.

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