Uma fotografia antiga do Parque Ibirapuera no grupo “AMO SP, fotos antigas da história de São Paulo” do Facebook chamou a minha atenção. Ela mostra dois meninos soltando pipa – ou papagaio, como gostávamos de chamar há algumas décadas em São Paulo. Encostadas em duas árvores que nascem de uma mesma raiz, duas mulheres – provavelmente, as mães dos meninos. Ao lado de uma delas, um livro aberto descansa no chão. Apesar de o texto que acompanha a imagem dizer que se trata do Parque Ibirapuera nos anos 80, é um pouco difícil de o reconhecer. Evidentemente, o parque mudou.
É um belo enquadramento e, com certeza, foi intencional, estudado, apesar de não dar essa impressão. A árvore dividida em dois troncos se econtra bem ao centro. Um dos meninos está do lado direito; o outro, do lado esquerdo. Além disso, a contraluz e as poucas sombras que ela gera nesse grande espaço aberto com pouquíssimas árvores nos ajudam a sentir a profundidade espacial, reforçada pelo contraste das árvores e figuras bem delineadas em primeiro plano com a massa de árvores evanescentes ao fundo.
Decididamente, é uma bela fotografia. Ainda que a dúvida persista sobre a verdadeira identidade do lugar, ela evoca um momento do passado, nem tão distante assim, e o seu contraste com o presente. Quase não se veem mais crianças empinarem papagaios em São Paulo. Eles foram proibidos nos parques da cidade. Penso nisso com horror. Quando criança e vizinho do parque, era lá que ia empinar os meus. Eu mesmo e os meus amigos os fazíamos: papel de seda colorido, astes finas de bambu e cola de água e farinha. Rabos mais ou menos compridos e algumas tirinhas aqui e ali, franjas, duas ou três cores…
Os meus eram sempre quadrados. Era assim que eu sabia fazê-los. E que vitória quando levantavam voo e pairavam no ar lá em cima, sem grandes problemas, e não teimavam em rodopiar fora de controle ou precipitar e dar cabeçadas no chão! Que prazer! Era preciso entender o vento, mesmo sem ter nomes para isso. Era preciso muito espaço para deixar que o sonho subisse alto. Era preciso evitar a proximidade de fios elétricos – e o Parque Ibirapuera era tudo isso, um oásis onde os hostis fios elétricos não tinham cidadania.
Esse grande prazer só era estragado por quem tinha como prazer estragar o prazer dos outros. O meu prazer era soltar o meu papagaio o mais alto possível pelo maior tempo possível, desafiando as mudanças repentinas de vento. Mas havia meninos cujo prazer era empinar pipas com a linha recoberta de vidro moído, para cortar a linha dos outros papagaios e, assim, fazer com que se perdessem no espaço sideral…
Quando apareciam, empinar pipas virava uma guerra. Pô meu, só faltava essa! Depois de ter perdido uns dois, decidi que estava na hora de tomar alguma medida. Recobri a linha com vidro moído. Não me lembro como, nem sei onde arranjei o vidro e como o triturei. Também não sei se minha mãe ou meu pai souberam disso. Estava determinado em dar uma lição àqueles cujo prazer era estragar o prazer dos outros.
Na verdade, recordo vagamente o que aconteceu depois. Fui para o parque empinar a minha pipa. Houve um combatimento aéreo? Não sei. Cortei a linha de alguém? Não faço a mínima ideia. Mas de uma coisa me lembro bem: foi então que comecei a me desapegar dos papagaios. O meu interesse parece que foi moído junto com o vidro que coloquei na linha para ir à guerra. Não, soltar papagaio não podia ser uma guerra. Era melhor ficar com a memória do sonho.
Hoje, vendo essa fotografia, me pergunto: será que foi essa a razão pela qual proibiram as pipas nos parques? Ou por que as pipas poderiam atingir e/ou incomodar outros frequentadores? Deixo a pergunta sem resposta. Uma coisa sei com certeza: que felicidade foi ter o Parque Ibirapuera – grande do ponto de vista de um adulto, mas infinito do ponto de vista de uma criança! – na minha infância e nele poder exercer a liberdade, com ou sem uma pipa na mão…