Sabe quando você fica remoendo uma coisa, um acontecimento que lhe causou indignação, mesmo meses depois? Pois bem, isso acontece comigo no caso da pichação do Monumento às Bandeiras em setembro do ano passado. Mesmo depois de ter escrito um artigo nesta revista sobre a desinformação – histórica, artística e conceitual – em relação ao próprio monumento, que o tornou alvo de pichadores cheios de estereótipos na cabeça, o acontecido não parou de voltar insistentemente à minha mente.
No artigo de quase dez meses atrás, entre outras coisas, eu apontava que, há poucos metros do monumento, ficava o Museu Afro Brasil, dedicado à recuperação não só do legado africano na história e cultura brasileiras, mas também de outras culturas injustamente negligenciadas, entre as quais, as indígenas. Isso para demonstrar que, contrariamente ao que se afirmava como uma das justificações para o ato de vandalismo, a cidade trabalhava para a reabilitação histórica dos povos perseguidos. É suficiente? Com certeza não.
Leia o artigo Ai, ai, ai… sobre a pichação do Monumento às Bandeiras aqui.
Porém, para quem quer ver, há outros sinais desse trabalho de reabilitação e de reconhecimento da dignidade do índio no próprio Parque Ibirapuera e espalhados na cidade. No parque, lembramos o busto em bronze de Chico Mendes, sindicalista rural, ecologista, defensor incansável da Floresta Amazônica, dos seringueiros e dos povos indígenas, assassinado em 22 de dezembro de 1988. A escultura, realizada por Heloísa Quintanilha Ribeiro, foi colocada no parque um ano após a morte de Chico Mendes. Por que, ao invés de picharem o Monumento às Bandeiras – que, gostem ou não, tem a sua razão de ser histórica –, não organizaram um evento em torno da escultura do Chico Mendes? Uma coleta para ajudar na sua preservação e divulgação? Com certeza, nem sabem da sua existência…
Tenho grande amor e respeito pelos povos indígenas e, desde criança, ainda ignaro das complexas e tristes tramas da história, me apertava o coração ver, por exemplo, o estado de semi-indigência em que se encontravam grupos guaranis no litoral sul de São Paulo e, ao contrário, me dava alegria vê-los vendendo os próprios artefatos nas feiras semanais e, de certa forma, integrados na vida de todos. Isso não me faz odiar o Monumento de Brecheret no Parque Ibirapuera, que, lembremos, concretamente, não retrata massacre algum e sim apresenta uma galeria extremamente nobre das etnias na base da formação da população brasileira: o índio, o negro, o branco e os mestiços. O monumento é um pilar da arte modernista brasileira, em que as formas se distanciam dos modelos europeus e olham para o continente africano e para a arte ameríndia.
Fora do parque, fui à procura de outros monumentos na cidade que homenageassem os índios e os negros. Não foi difícil encontrá-los, apesar de não terem as enromes proporções e a proeminência da obra de Brecheret – seja no tamanho, seja na qualidade. Eles estão em vários pontos da cidade: na Praça Marechal Deodoro, na Praça Osvaldo Cruz, na Avenida Vieira de Carvalho, no Largo Paissandu. Sim, o seu número é limitado se comparado com os monumentos celebrando santos ou estadistas. Mas por que, ao invés de pichar monumentos com o pretexto de que contam a história do ponto de vista dos “perseguidores” – esquecendo-se de que esses monumentos também são fruto da história e como tal devem ser analisados e entendidos – , não se procura chamar a atenção para aqueles monumentos que exaltam as comunidades historicamente marginalizadas? Por que não se faz algo para a preservação e divulgação dos monumentos que as representam?
Decididamente, falta conhecimento e inteligência a esses “protestadores”, que, com as suas pichações, ao invés de despertarem o interesse pela própria causa – se é verdade que têm realmente uma causa –, obtêm o efeito contrário. Se usassem o dinheiro da tinta das pichações para organizar um encontro, uma performance, uma instalação, um evento que denunciasse a triste história – ignorada ou pouco contada – dos índios desde os tempos da colonização e a sua situação atual, se organizassem uma exposição fotográfica de impacto, talvez provocassem uma reação benévola e útil ao reconhecimento da dignidade histórica, humana e cultural dos nossos índios.
Mas, voltando ao Ibirapuera, há no parque e no seu entorno esculturas de todos os tipos e proveniências, que remetem a uma multiplicidade de histórias e experiências, com uma diversidade bastante grande. Na Praça Túlio Fontoura, ao lado da Assembleia, fica uma estátua de Mahatma Gandhi; dentro do parque, nas proximidades do Portão 9A, temos o grupo do Laocoonte, uma reminiscência da mitologia grecorromana; entre o lago e o Portão 10, fica o monumento dedicado a Pedro Álvares Cabral… Somando-se os museus e o Pavilhão Japonês, verifica-se a presença de um multiculturalismo consideravelmente grande e a possibilidade de se contar e interpretar muitas histórias. Só não vê quem não quer.
De qualquer forma, hoje, a melhor homenagem que se possa fazer a qualquer um no Parque Ibirapuera não é acrescentar ou suprimir monumentos e sim conservá-los bem; e, sobretudo, cuidar carinhosamente da sua flora, da sua fauna e, se possível, ampliar o verde dentro do parque e nos seus arredores.