FOLHAS NO QUINTAL

Essa é para a Dona Armelinda, vovó da Judy, que um dia mandou cortar a goiabeira de que a Judy tanto gostava, porque, entre outras coisas, fazia muita “sujeira” no quintal. É bom avisar desde já que não se trata de crítica ou ironia. Ao contrário, é com carinho que escrevo.

Rastelando folhas no outono em Connecticut (2024). Foto: Roberto Carvalho de Magalhães.

     Vamos colocar as coisas um pouco em seu devido contexto. Dona Armelinda pertencia a uma geração em que as mulheres carregavam a casa nas costas. Posso imaginá-la varrendo o quintal, enquanto o vovô estava sentado confortavelmente na sala assistindo televisão ou lendo o jornal. Dar uma varridinha no quintal não parece ser grande coisa. Mas… depende do que se faz antes e do que vai se fazer depois.
     Dona Armelinda, diariamente e sem pausa nos fins de semana, arrumava a casa – refazia as camas, tirava o pó, varria, limpava o banheiro e – espero que não o fizesse todos os dias! – limpava os vidros das janelas. Diariamente, ela lavava, estendia e passava as roupas – e as recolocava nas gavetas e armários. Todos os dias, ela preparava o café da manhã, o almoço e o jantar, o que inclui arrumar e tirar a mesa, e lavar e guardar as respectivas louças. Talvez não todos os dias, remendava meias e pregava botões, limpava o fogão, o forno e a geladeira. Além disso, quem é que ia fazer as compras? A peregrinação diária à padaria? A via crucis da feira semanal? Dona Armelinda, claro. Alguém a ajudava a lavar as verduras, descascar as batatas, limpar o peixe, regar as plantas, encher de água o filtro de barro? Provavelmente não. E nem falemos de todos os cuidados quando os filhos ainda eram pequenos – e também já não tão pequenos. E não era ela também quem preparava e dava a comida para o cachorro?
     Assim, exausta, quando olhava as folhas da goiabeira espalhadas pelo quintal, acostumada a fazer tudo sozinha, pois a casa era obrigação dela, um dever inato e inquestionável, ficava furiosa. O seu olhar se turvava e a árvore se tornava a culpada, o bode expiatório da escravidão em que se encontrava. Era a única tarefa que ela podia suprimir para aliviar o seu dia-a-dia sem causar um terremoto.
     Hoje em dia, cinco décadas depois de luta feminista e com o amadurecer de uma consciência ambientalista – e se ela tivesse visto as folhas que tenho por aqui -, talvez a atitude de Dona Armelinda fosse diferente e o pé de goiaba tão amado da Judy tivesse sobrevivido. Atualmente, teríamos mais dificuldade em justificar a sua ação. Na época, somando-se a tudo o que foi dito acima, talvez certa dose de orgulho da Dona Armelinda não tenha deixado que ela pedisse para a própria neta varrer o quintal de vez em quando ou para que o vovô levantasse o traseiro da poltrona e assumisse algumas tarefas dentro de casa.
     O pé de goiaba pagou o pato – cortá-lo foi sem dúvida mais simples do que enfrentar séculos de estereótipos sobre o papel da mulher na família e na sociedade. E, agora, toda vez que uso o rastelo, penso na Dona Armelinda – e procuro não culpar as árvores pelo que eventualmente esteja errado na minha vida.
(25/10/2024)

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