Quando os espinafres nasciam na Av. 23 de Maio

A realização do Parque Ibirapuera na década de 1950 não foi a única grande transformação nessa área de São Paulo. Dez anos mais tarde, seria construída a Av. 23 de Maio, que mudaria completamente a fisionomia do entorno do parque e reduziria drasticamente a área verde na região.

Av. 23 de Maio com o Obelisco e o Parque Ibirapuera ao fundo (foto: Roberto Carvalho de Magalhães, 2010)

Por mais estranho que possa parecer, houve um tempo em que não havia metrô em São Paulo e as ruas da cidade eram calçadas com paralelepípedos de granito. Bondes vermelhos e amarelos ligavam os bairros. Lembro-me da linha que, passando pela rua Tutóia, no Paraíso, ia até o Ipiranga e passava em frente ao Instituto de Cegos Padre Chico, na rua Moreira de Godói.

Bonde da linha Santo Amaro na Av. Rodrigues Alves (Vila Mariana) em uma fotografia de Carlheinz Hahmann de 1948.

A Avenida Paulista era um desfile de casarões de vários estilos, normalmente saudosos do país de origem de cada família. Entre outras, me encantava a Casa Mourisca na esquina com a Alameda Joaquim Eugênio de Lima. A Avenida Paulista também tinha, nas suas calçadas muito mais largas do que as atuais, uma fila interminável de árvores frondosas.

Casa das Rosas, um dos poucos casarões preservados na vergonhosa destruição de 1982. Construída no começo da década de 1930, é um projeto de Ramos de Azevedo. (Fotografia dos anos 1970. Autor descnhecido.)

Houve um tempo em que os muros baixos ou inexistentes das casas deixavam ver, para quem passasse de carro, de ônibus ou a pé, os jardins particulares, grandes ou pequenos. Os jardins desaparecidos da Rua Augusta e da Avenida Europa, por exemplo, eram um extasiante festival de azaléas no final do inverno e começo da primavera.

Nessa cidade de São Paulo de então – que parece um sonho, mas que existiu realmente – também não havia a Avenida 23 de Maio e as pontes que a cruzam. Na altura do Colégio Bandeirantes, havia um campo de futebol de terra batida, onde os alunos iam jogar bola na hora do recreio e onde hoje se encontra o viaduto da Rua Cubatão. Daí para baixo, ainda havia uma sucessão de chácaras, que, entre a urbanização crescente da área, ia quase até o terreno alagadiço onde, na década de 1950, foi criado o Parque Ibirapuera.

Vista aérea do Parque Ibirapuera (foto: Vasclo Agência Fotográfica, 1954). Embaixo, à direita, pode-se ver a grande área verde formada por chácaras, que seria ocupada pela Av. 23 de Maio.

Era possível ir de bicicleta da Vila Mariana até o Planalto Paulista sem quase encontrar carro algum. E, se isso acontecia, eles tinham tempo e paciência para diminuir a marcha e ultrapassar o ciclista à devida distância.

A inauguração da Avenida 23 de Maio ocorreu em 1969, proporcionando uma ligação rápida entre o sul e o norte da cidade. Apesar do tráfego intenso que logo tomou conta dela, na parte entre o Ibirpuera e a rua Cubatão, pés de espinafre ainda insistiam em crescer ao longo da sua ilha estreita e ininterrupta. Enquanto ainda era possível atravessá-la e caminhar ao longo da ilha, as mães mais expertas em hortaliças não hesitavam em recolhê-los.

À esquerda, Av. 23 de Maio em fase de acabamento, vista da altura da rua Cubatão em direção do Obelisco; à direita, a avenida em construção com o viaduto da rua Tutóia.

Entre os viadutos da Rua Cubatão e da Rua Tutóia, um grande mural em branco e preto do artista Eduardo Kobra, o “Muro da memória”, nos lembra que São Paulo não foi sempre como a vemos atualmente.

Eduardo Kobra, Muro da Memória 2009, Av. 23 de Maio, São Paulo. Foto: Roberto Carvalho de Magalhães, 2010.

O crescimento desordenado e a falta de planejamento que nos roubou o charme que, hoje, admiramos tanto nas cidades europeias, nos tirou os bondes, cobriu os paralelepípedos com a vulgaridade do asfalto de baixo custo, acabou com os casarões da Av. Paulista e em outros lugares e, sobretudo, dizimou o verde. É por isso que temos que defender e proteger cada centímetro quadrado de verde que nos resta – e, se possível, ampliar as áreas verdes da cidade. Verde não significa somente beleza, mas também – e sobretudo – melhor qualidade do ar e mais saúde.

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