Gostaríamos que a história fosse outra, mas os fatos não mentem. O que eles nos contam sobre a gestão do Parque Ibirapuera nos últimos anos e sobre as suas consequências deveras negativas (degradação, falta de segurança, destruição do verde, entre outras) é desconcertante.
Porém, antes de fazer esse triste balanço, lembremos que o Parque Ibirapuera, além de ser um patrimônio de São Paulo, de ser amado pela sua população em geral e de estar intimamente ligado à história cultural, urbanística e arquitetônica da cidade, é tombado na sua totalidade pelo CONDEPHAAT e pelo CONPRESP e, limitadamente aos edifícios projetados por Oscar Niemeyer, pelo IPHAN. Isso significa não só que a sua fisionomia e a sua vegetação devem ser objeto de preservação e manutenção permanentes, mas que o seu desenho e a sua paisagem não devem ser modificados.
- Para um aprofundamento sobre o tombamento do parque e as suas implicações, veja aqui.
O Parque Ibirapuera, como todos os parques urbanos de certo porte, é – ou deveria ser – principalmente um lugar de devaneio, de contato com a natureza e de bem estar social. As funções que desenvolve, de acordo com a evolução das demandas sociais, não devem ocorrer em detrimento da sua preservação. Somente uma sociedade e uma administração míopes e imediatistas nos seus interesses e na sua política podem achar que tudo se pode modificar e/ou substituir em função de um capricho momentâneo ou de eventos efêmeros. Não é assim. Tal política leva inevitavelmente ao cansaço, à degradação – ambiental e social – e à destruição.
A ideia de que o uso temporário de um espaço determina a sua forma e, portanto, a sua modificação toda vez que uma nova função lhe é atribuída leva, inevitavelmente, à descaracterização e despersonalização desse espaço, que se torna tudo e nada ao mesmo tempo. Ele pode, sucessivamente – e facilmente –, ser substituído por outro, ficando somente a sua ruína para a posteridade. A falta de preservação e a mudança incessante são contrárias à memória e ao sentido de pertencimento e de afeto, que na memória se desenvolvem e se fortalecem e fazem com que as pessoas amem um lugar e o respeitem.
Pois bem, nos últimos anos, a ideia de que o Parque Ibirapuera é um lugar de entretenimento se intensificou de tal forma que shows e eventos de grande porte começaram a comprometer seriamente a preservação do verde. Não só. A incapacidade da administração – e ousaríamos dizer falta de vontade – de fazer cumprir o regulamento do parque, levou muitos frequentadores a achar que podem fazer tudo o que querem em qualquer lugar, como se não houvesse algum limite no seu uso: grupos sobem na OCA sem cerimônia, skatistas e patinadores tomam conta da Marquise – onde os pedestres temem caminhar –, ciclistas usam a ciclofaixa para treinos, quando a velocidade máxima deveria ser de 20 km/h, multidões de adolescentes se embriagam e se drogam na Marquise à luz do dia nos fins de semana sem intervenção alguma das autoridades, grupos jogam bola nos gramados onde não deveriam… A lista de regras sistematicamente desrespeitadas e ignoradas pela própria administração do parque é longa, mas esses poucos exemplos já dão uma ideia do problema.
Mas o problema não é somente a falta de imposição do regulamento para o público, que existe e foi concebido para a convivência pacífica e agradável de todos os grupos – esportistas, devaneadores, crianças – e para a preservação do próprio parque no presente e para as gerações futuras. O problema é, também, o desrespeito das normas internas pela própria administração, que passa por cima das deliberações do Conselho Gestor e realiza ações contrárias à preservação do parque, especialmente do verde.
Tendo dificuldade em organizar um sistema de segurança mais eficiente, a administração do Parque Ibirapuera resolveu que, para coibir atos sexuais no parque, especialmente durante a abertura noturna nos fins de semana, seria melhor eliminar a vegetação ciliar, podar drasticamente arbustos e muitas árvores, o que vai totalmente contra a sua preservação estabelecida pelas resoluções de tombamento do CONDEPHAAT e do CONPRESP. Aqui é o caso de dizer, justamente, que um erro puxa outro. Em 2013, teve início a abertura noturna do parque nos fins de semana. A experiência, que previa uma feira de artesanato, não funcionou. A feira minguou por falta de público. Alguns skatistas utilizam a Marquise e a prostituição corre solta nos lugares mais apartados ou em meio à vegetação. O que se faz então? Ao invés de admitir que a abertura noturna não teve o sucesso esperado, – que custa dinheiro aos cofres públicos, que, ainda por cima, gera problemas de segurança e de mal uso do parque – e que seria melhor voltar a fechar o parque às 22 hs no verão e ainda mais cedo no inverno, corta-se a vegetação!
Já em 2014, em carta ao Secretário do Verde e do Meio Ambiente, a presidente do MAM, Sra. Milú Villela, apontava que “o número de acidentes decorrentes da concentração de jovens aos domingos aumentou consideravelmente nos últimos seis meses. Às dez da manhã, quando o MAM é aberto ao público, vários menores já se encontram embriagados e dormindo no chão, alguns dos quais em coma… Acreditamos que esse quadro, por si só muito preocupante, agravou-se depois que o acesso ao Parque Ibirapuera foi liberado sem interrupção das noites de sábado para domingo” (carta de 16 de junho de 2014).
- Leia a carta da presidente do MAM à Secretaria do Verde e do Meio Ambiente aqui.
Mais recentemente, no seu relatório datado de 20 de junho de 2016 sobre os problemas de segurança no Parque Ibirapuera, o Comandante Regional da Guarda Civil Metropolitana, Rubens Aparecido da Silva, recomenda claramente que “salutar seria o fechamento comum as 22h00min, de forma empírica, observamos que o público presente no Parque neste período [durante a abertura contínua nos fins de semana] é composto basicamente de homossexuais (sic), skatistas e jovens que promovem encontros e invariavelmente apresentam problemas com bebidas alcoólicas, não o cunho do lazer, cultura e entretenimento proposto pelo parque”.
- Leia o relatório da GCM aqui.
Os problemas relativos à abertura 24 horas nos fins de semana também têm sido documentados e apontados pelo Parque Ibirapuera Conservação na sua página Facebook há bastante tempo. Há muito tempo, o Conselho Gestor do Parque solicitou a seu diretor, o engenheiro agrônomo, Heraldo Guiaro, um balanço e uma posição a respeito, mas, desde então, obtém somente pedidos de adiamento para dar uma resposta e o descumprimento sistemático do protocolo… Apesar de todos os sinais alarmantes (tantos!), a administração continua a fazer vista grossa.
O ano que está se encerrando foi um ano difícil para o Parque Ibirapuera, sobretudo por causa da deriva total da sua administração. Em junho, assistimos à remoção, realizada de forma totalmente irregular, com um desprezo inaudito pelos procedimentos regulamentares, de uma das árvores icônicas do Parque: a grande ficus elastica da Praça da Paz. Realizou-se a remoção ilegal de grande quantidade de vegetação ciliar, com os pretextos mencionados acima. Uma sequência sem precedentes de “rolezinhos”, com um rastro de destruição e sujeira inaudito, para não falar nos casos de coma alcoólico e de estupro ocorridos durante essas concentrações, ocorreu e continua ocorrendo sem que a administração faça, concretamente, algo para coibi-los. Shows de grande porte sem alavará foram permitidos, com consequente desruição de canteiros e mais lixo espalhado por todos os lados. A administração do parque autorizou sem passar, inicialmente, pelo crivo do Conselho Gestor, o que é contra o regulamento interno, a construção de uma obra de arte/pista de skate temporária em espaço adjacente ao Pavilhão da Bienal, roubando literalmente espaço verde do Parque – quando deveria trabalhar para preservá-lo e aumentá-lo. Passando mais uma vez, por cima do Conselho Gestor, a administração do Parque Ibirapuera e a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente permitiram poda de árvores para a construção, ainda que temporária, de uma estrutura para receber o São Paulo Week Fashion, descumprindo, assim, aquela que deveria ser a sua missão principal: não permitir que o uso do Parque ponha em risco a sua própria preservação.
- Leia sobre as controvérsias da construção da obra de arte/pista de skate temporária, parte integrante da Bienal de 2016, aqui.
Não falaremos dos acidentes e dos conflitos nunca resolvidos entre ciclistas e pedestres ao longo da ciclofaixa por falta total de imposição do regulamento, que estabelece com clareza direitos e deveres de uso. Citamos somente o triste caso da senhora de oitenta anos atropelada por um ciclista, numa manhã de um dia útil, em fevereiro. Omitiremos o estado de degradação em que caiu o viveiro de plantas Manequinho Lopes. Deixaremos para outra ocasião, também, o esgotamento dos recursos financeiros do Parque, deixando-o sem contrato com a vigilância privada, que é parte importante da sua segurança, já bastante carente mesmo quando o contrato estava em curso.
- Leia sobre o caso da senhora atropelada na ciclofaixa do Parque Ibirapuera aqui.
Esses são somente alguns dos fatos negativos que caracterizam essa gestão do Parque Ibirapuera e as negligências da sua administração e da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente. Infelizmente, são fatos tão significativos e as suas consequências tão negativas que acabam obscurecendo e pondo em risco tudo aquilo que o Parque tem de bom. Um lugar que deveria ser um oásis de verde e devaneio para o bem estar da população, está sendo entregue à degradação graças a uma administração não transparente, negligente em relação à conservação do verde, incapaz de tornar o seu regulamento efetivo e de respeitar o seu caráter de patrimônio a ser protegido contra o uso indevido e contra o vandalismo.
Post scriptum: quando já tínhamos terminado de redigir o texto acima, recebemos a notícia de que a bela iluminação com fitas LED ao redor da casa do Bosque da Leitura do Parque Ibirapuera – realizada pelos voluntários e doadores do Parque Ibirapuera Conservação – foi destruída e roubada por vândalos durante a noite. Mais um triste exemplo para colocar no balanço negativo da administração do parque e da política para os parques da prefeitura de São Paulo.