O recente fogo ateado na escultura do Borba Gato, em São Paulo, reacendeu um debate sobre quais ações são ou não úteis para se discutir a violência cometida contra os povos indígenas e os negros na história e no presente brasileiros. Já tínhamos assistido às pichações do Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, alguns anos atrás, com grupos exigindo ingenuamente a sua remoção e outros condenando a intervenção. E nada disso resultou em um debate profícuo e em ações verdadeiramente positivas no reconhecimento dos crimes históricos e na direção desejada de uma mais do que necessária reparação.
Das pichações para cá, assistimos a exatamente o contrário: os ataques de grileiros e os incêndios criminosos na Amazônia só aumentaram, núcleos indígenas guarani estão sendo sistematicamente rechaçados de suas terras originárias no Pico do Jaraguá, em São Paulo, para a construção de condomínios, tribos indígenas são violentamente atacadas e suas casas incendiadas até mesmo em áreas demarcadas e a população negra continua sendo o alvo privilegiado da violência policial. A lista é tristemente longa.
As comunidades indígenas ou quilombolas estão em risco mais do que nunca. E as pichações e os incêndios de “símbolos dos crimes históricos”, causados pelos auto proclamados defensores da causa indígena e/ou negra, só conseguem gerar um debate sobre atentado ao patrimônio histórico e público… Uma das razões, já claramente demonstradas, é que não se muda a história e que esses monumentos, que se goste deles ou não, qualquer que tenha sido a motivação para erigi-los no passado, fazem parte dela. História que, sem dúvida alguma, deve ser discutida e reescrita, para se revelar a parte levianamente ocultada.
Mas as ações violentas, além de ignorar, como no caso do Monumento às Bandeiras, a importância estética de uma obra para lá do seu tema narrativo discutível, ressoam mal na população, porque ela já tem que lidar com uma dose enorme de violência no seu cotidiano, da qual está literalmente exausta. Então, o que fazer para chamar a atenção da população em geral para o problema indígena e da exclusão dos negros, ainda tão pervasivos na nossa sociedade? Como reivindicar a sua reabilitação?
A resposta vem de um artista indígena pertencente ao povo Macuxi, de Roraima: Jaider Esbell. Para a Bienal de São Paulo deste ano, ele instalou duas serpentes gigantes, de 24 metros de comprimento cada, em posição de ataque, na lagoa do Parque Ibirapuera. Exatamente às margens da lagoa, encontra-se o monumento a Pedro Álvares Cabral, o assim chamado descobridor do Brasil. A história “oficial” difunde a ideia do “descobrimento”. Na verdade, tratou-se de invasão – com o seu rastro de guerras, extermínios e destruição – de um continente já ocupado. Essa parte da história é oportunamente ignorada pela narrativa eurocêntrica, que, nos séculos, foi introjetada e propagada pelos próprios brasileiros.
Para corroborar essa narrativa, criou-se a ideia do índio indolente e não produtivo, além do desprezo pela sua condição de pagão, por não fazer parte do mundo cristão. À submissão ou eliminação física, somou-se a conversão ao cristianismo e a consequente supressão das várias culturas pré existentes no continente.
Agora, nas palavras do próprio Jaider, as serpentes “estão prontas para dar um bote em Pedro Álvares Cabral”. Dessa forma, não se destrói – com fogo ou outros meios – aquilo que já ocorreu na história e não é possível desfazer. Cabral chegou ao Brasil e abriu as portas para a sanguinária colonização e isso, por mais triste que seja, não pode ser revertido, mas pode ser inteligentemente incorporado numa narrativa mais ampla. É o que acontece nessa instalação: a imagem do invasor/colonizador é transformada – e criticada – numa peça de uma narrativa mais ampla, em que a cultura indígena reivindica a sua presença e o seu reconhecimento.
Dessa forma – e apesar de pertencer a uma cultura específica de um território -, a fantástica instalação de Jaider Esbell, que se ilumina à noite, dá voz a e se eleva a representante de todas as culturas indígenas.
Vale a pena lembrar que isso acontece no Parque do Ibirapuera, onde se encontram instituições que apontam e trabalham para a afirmação da nossa grande diversidade cultural e para a reabilitação da histórica e fundamental contribuição negra para a formação do país. São elas o MAM e o Museu Afro Brasil.
Este ano, a Bienal apresenta a maior exposição de artistas indígenas da sua história e o MAM acaba de abrir a exposição “Moquém-Surarî: arte indígena contemporânea”, com curadoria do próprio Jaider Esbell e a contribuição dos antropólogos Paula Berbert e Pedro Cesarino. Essa é a via.
Para saber mais sobre Jaider Esbell e seu trabalho, veja o vídeo aqui.
Leia sobre a mostra do MAM aqui aqui.